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Nossa casa foi construída no eixo entre dois lotes de terreno. Era cercada por muros de alvenaria capeados com telhas capa-canal. Época de longos corredores, foi construída solta no lote com salas de estar e de jantar, 4 quartos, copa e um banheiro para a família. Na parte inferior, a lavanderia, um banheiro, quarto para empregadas e um porão. A garagem em uma das laterais foi feita anos depois.

Papai aprovou o projeto sem consultar mamãe, que com sua visão, achou muitos defeitos. O tempo provou que ela tinha razão. Ele deve ter comprado o projeto quase pronto, pois o estilo se espalhava pelo Estado.

Ao lado interno do muro, foi plantada uma cerca viva. Ficava muito cheia de pó e secava nos períodos de verão, mas resistia. Ao lado direito, elevada sobre estrutura de tijolo e pedra, uma grande caixa d´água e a passagem para os fundos onde tinha pomar, galinheiro, cachorros, uma área com verduras, frutas  e legumes plantamos durante o ano.

Nos fundos havia acesso à lavanderia, ao porão e a área.

A cozinha tinha fogão à lenha. Lugar de se divertir e comer atacando compotas e cocadas… A iluminação pelas manhãs me energizava.

No jardim havia balanços, um lago pequeno em curva, o gramado, as calçadas e canteiros com rosas biscuit, onze horas, amor-perfeito, copos de leite, entre outras flores escolhidas por mamãe e renovadas de tempos em tempos.

Os degraus da área de acesso à porta principal em formato de meio círculo e eu temos uma história.

Um dia, com pressa, tropecei e bati com o estômago na borda do degrau. Eu mal conseguia respirar de tanta dor. Minha mãe me tratou com gotinhas de uma infusão de Arnica, que dormia há tempos na cachaça, e compressas com um pano nela embebido. Como todo cuidado de mãe, me acalmou e foi passando a maior dor que lembro ter sentido na minha infância.

As crianças andavam pelos degraus.

Descobri que as rãs gostavam de aparecer no lago. Eu as pegava na mão, onde elas ficavam muito pouco e gostava muito de acompanhar seus movimentos esquisitos, o salto na direção da água e o trajeto entrando e saindo pelas tubulações. Lembro que pedi casinha para elas. O marceneiro da fábrica fez com madeira, mas elas não se importavam. Não dormiam ali como eu esperava. Também houve um tempo com peixes coloridos, que não resistiram ao frio da região. Quem mais resistiu foram hos jabotis verdinhos que ganhei e gostavam de comer moscas, que eu caçava nos vidros das janelas.

Minha mãe tinha horror de moscas. Morar perto do frigorífico tinha desvantagens com o cheiro que, conforme o vento, exalava.  Ela usava jatos de Raiovac embaixo de nossa mesa de comer…  eram sempre muitas.

O lago também servia algumas vezes para afogar os gatos que miavam a noite inteira. Não deixavam ninguém dormir, pois nasciam e cresciam abaixo de nossos quartos, no porão. Eram tempos em que tudo que incomodasse o descanso do homem, deveria ser resolvido. Tarefas femininas que, sempre que eu descobria, me faziam chorar muito. Papai levantava às 6

No canteiro que circundava o lago, um pinheiro cresceu rapidamente. Deve ter sido um pinhão que brotou em meio ao saco que aguardava na despensa. Minha mãe pensou nos Natais.  A solitária e opulente araucária, longe de seus pares nas matas, madeira-prima para as madeireiras instaladas na cidade, destacava-se rompendo com a singeleza do estilo de casa californiano e o desenho do jardim, com aquela curva no lago, que prenunciava o modernismo?

Entrada principal – Arquivo MC

O tempo passou. Após a morte de papai, minha mãe foi morar perto da Catedral. O apartamento no centro da cidade estivera fechado durante décadas e, agora, sair daquela casa enorme seria mais seguro para uma viúva.

A casa foi vendida e ali funcionou um restaurante por um tempo. O pinheiro viria a ser decepado, a madeira vendida. Depois, foi comprada por dois irmãos. Os irmãos brigaram e dividiram o patrimônio. Foi quando a casa foi cortada ao meio literalmente, na divisa entre os dois lotes. O resultado foi uma composição esquisita: um volume projetado por um engenheiro, unido à casa cortada ao meio. Feio e esquisito, a estranha arquitetura grita ainda sem voz! Eu ouvi…

A casa de influência da arquitetura dos países do Prata carregava espaços que contavam muitas histórias de  amor, de cuidados, de namoros, noivados e casamentos, de separações e de nascimentos… festas, aniversários, nossos inesquecíveis Natais. Houve muitas missas com bispos e padres. Ficara gravado nas alvenarias, as muitas serenatas e os milhares de abraços. Também velórios, entre tantas outras coisas muito dolorosas. A vida a se fazer e refazer o tempo todo entre perdas e danos de uma grande família. O lago em curva – a delicadeza – foi aterrado.

Nessa casa ocorreram também dias em que a chuva era maior escorrendo pelas paredes do que na rua. Desespero da minha mãe durante anos a afastar móveis, o piano, secar muitos livros no sol e com talco, maizena… Até que um dia, meu pai conseguiu pagar toda a reforma do telhado. Eu estudara e sabia que ponto da cumeeira era baixo demais para telhas francesas. Ai, esses erros construtivos que atrapalham tanto a vida familiar…

Em uma de minhas últimas idas a Passo Fundo, passei pela avenida e vi o que restara no meu bairro. Foi a última vez e nunca mais eu quis olhar. Foi também o que decidi fazer ao saber da demolição da fábrica, da destruição da imagem urbana, do chaminé que fazia os operários sofrerem ao ouvir caírem os tijolos, inconformados com o fechamento de uma empresa como aquela, histórias que eu registrei em artigos sobre Arquitetura Industrial em Passo Fundo e na pesquisa que fiz de percepção ambiental urbana. O que veio depois com a construção de um shopping no lugar da vida fabril também me fez lembrar do livro A Caverna, de Saramago.

Alice, minha mãe, viveu até os 96 anos e nos ensinou muitas lições de vida. Vão-se os anéis, ficam os dedos. Ela seguiu com força de viver e coragem. A vida recomeçaria sempre a cada nova estação. E a cada dia, nos ensinou que devemos agradecer por ainda estarmos vivos junto aos nossos.

A casa onde vivi até minha adolescência continua dentro de mim. A fábrica me aguarda em um romance. E eu viverei também para contar essas histórias.

 

MARILICE COSTI vem escrevendo suas memórias. Especialista em Arteterapia, é Mestre em Arquitetura, autora de diversos livros, entre eles: “As palavras e o cuidado: Arteterapia e Literatura”, “A fábula do cuidador” “Como controlar os lobos? e vários de literatura, entre eles Ressurgimento recebeu Prêmio Açorianos em 2006. Foi editora da revista O Cuidador, para cuidar quem cuida (2008-2015), finalista no Prêmio Brasil Criativo – SP, em 2014.  Criou Cuidaqui.com. Atualmente atende em seu Atelier com Arteterapia e Literatura.

 

Glossário_______________________________________________________________________

Residência típica dos anos 1950 construída no chamado estilo californiano, popularizado no sul do Brasil devido à influência dos países do Pra

ta. Uma das características do estilo é a varanda em arco com prolongamento inclinado da parede e as pedras rústicas utilizadas como elementos decorativos.

Modelo de casa em estilo californiano na década de 50, séc. XX. Garibaldi/RS. (figura) In: Garibaldi – a capital do espumante. In <http://turismo.garibaldi.rs.gov.br/rotas-atrativos/passadas-a-arquitetura-do-olhar/casa-californiana-decada-de-50> em 24.05.2019

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Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
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