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Memórias de Marilice: Velórios e TIO DAVID

Você acha que velórios são locais especiais? Detesta ir? Durante um bom tempo, eu gostava de ir. Desconsidere-se a dor das pessoas que perdem, que é real, o meu interesse girava no universo de pessoas (ou seriam personagens?) que por ali circulam, pelos mais variados motivos. Pois foi com um convite fúnebro que tive o estímulo para escrever o meu primeiro texto, que foi premiado.

Também forsm o lugar onde os irmãos Lanner me divertiam. Pasme! Muitas vezes, ao levar pito de alguém incomodado com a nossa conversa, tive que conter o riso. Eu saia de fininho acompanhada do tio David, que sussurava sorrindo para mim: Ele está morto…não escuta… e movia os ombros com desdém.

Esses tios irmãos tinham uma peculiaridade. Quando não queriam ouvir, mostravam o equipamento nos ouvidos e diziam, não estou ouvindo bem. Haviam desligado o aparelho auditivo. E não ouviam mais nada…

A família conhecia aqueles irmãos da “pá virada”. Óbvio era que aqueles enterros não eram de uma pessoa muitíssimo próxima da família. Era apenas mais um momento para atualizarem suas brincadeiras e recontarem suas histórias e eu era a plateia naquela vez. Havia sempre motivos para rir, podia ser do morto, de algo que viveram juntos, de muitas coisas mais, muitas antigas que relembravam. Pura alegria pelo reencontro, um dos ensinamentos.

Eu, jovem, metida no meio dos homens das piadas, tios que eram irmãos da minha avó, ficava no mínimo esquisito. Eu preferia ficar longe do morto. O cheiro das flores me enjoava, as viúvas endeusavam seus homens, os maridos sofriam como eternos apaixonados… “Poveri uomini ” solitários.  Eu, sempre observadora, via o quanto aquilo tudo se enrolava em fumaça. O morto nem sempre tão bom assim… fora simplesmente uma pessoa!  Tantas fantasias a demonstrarem mais um desejo do que a realidade aos que ficavam… As aparências… Ah, essas aparências… também nos rituais.

Imagem: Marilice Costi

As tais piadas quebravam o gelo das longas esperas até o caixão ir para a cova… Coisa de outros tempos, regadas a muito café preto e bolachinhas para aguentar a noite muitas vezes muito fria… Hoje ninguém fica na capela, com medo de assaltos na madrugada. Nem um morto se respeita mais. E  atualmente, os celulares certamente ocupam o lugar dos diálogos e da troca de informações, mesmo no silencioso.

Festa nos velórios?

Os irmãos de meu tio David, Mário e Ermínio, juntavam-se a ele ao chegarem ao cemitério. Tio Mário tratava de pessoas utilizando pêndulos e fotografias. Eu achava aquilo hilário. Ele se irritava com as minhas dúvidas quanto à sua seriedade e com as gozações do irmão David… Tio Ermínio, o mais conservador, rígido, católico, logo entrava em discussões sobre a Bíblia… Havia diferenças importantes entre os dois, mas qualquer irritação logo passava e os três com aquela dentadura branca a desenhar a face, eram pura farra do lado de fora da capela, onde poderiam continuar.

 

Valorizo muito os velórios. Não é por gostar da morte, ao contrário, amo a vida. É que naquele pequeno espaço, encontro uma concentração de humanidade, amplio meu conhecimento de vida, escuto histórias com detalhes, contadas como um fiar de um terço, que também é puxado pelas mais religiosas. Lugar de sabermos quem se casou, quem teve filhos, como cresceram… e por onde andam, tanto que as famílias grandes se espalharam por este mundão, tão pequeno devido às mudanças atuais. São momentos riquíssimos em sentimentos, em valores de vida de pessoas que desconhecíamos. Lugar de reencontros, de dar e receber abraços, é de avivar as lembranças e calor humano, tão necessário em nosso cotidiano.

Foi em um momento desses que me inspirei e dei início à minha vida de escritora. O premiado “Convite para a Missa de 7º Dia” (Leia mais aqui.), título do anúncio do jornal, informou-me da morte de “meu médico”. E fui para a máquina datilográfica registrar um pedacinho de minha vida na capital, falar da minha dor pela perda e a eterna saudade que eu teria do Dr. Celso Aquino, neurologista que me cuidara desde os três anos. Tanto que me acolheu!

Também perdi meu tio David, que me cuidava. Sua homeopatia e seus abraços, o olhar para dentro de mim, um carinho que dedicava à menor da Alice, sua sobrinha e minha mãe.

Dentro de mim permanece o que me foi mais caro em nossa amizade: a alegria que deve continuar apesar das perdas, o seu sorriso, a sua escuta atenta, o seu acolhimento, a sua alegria e a brincadeira nas horas graves, hoje misturados à minha eterna saudade.

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Escrito em 29/05/2016, Porto Alegre.

MARILICE COSTI é Especialista em Arteterapia, Mestre em Arquitetura, autora de diversos livros, entre eles: “As palavras e o cuidado: Arteterapia e Literatura”, “A fábula do cuidador” “Como controlar os lobos? e vários de literatura, entre eles Ressurgimento – livro Prêmio Açorianos em 2006. Foi editora da revista O Cuidador, para cuidar quem cuida (2008-2015), finalista no Prêmio Brasil Criativo – SP, em 2014.  Criou Cuidaqui.com. Atualmente atende em seu Atelier com Arteterapia e Literatura/ Cursos. Dá palestras.

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Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
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Uma resposta

  1. Olá! Gostei das memórias. VELÓRIOS retrata uma época que vivenciei. Os irmãos Lanner (quase todos com a audição prejudicada) eram “figuras” INESQUECÍVEIS, que animavam os eventos FÚNEBRES. As risadas do tio Mário, como esquecer…

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