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DO SER MÃE 1: A contação de histórias

Para Alice, minha mãe.

Mãe, o que poderei fazer agora? Era a pergunta recorrente após a refeição, tudo dependia de sua permissão. Mamãe sempre queria que eu dormisse após o almoço. Além de ser a hora do silêncio para a sesta de 30 minutos de meu pai, creio que eu, serelepe, precisava dessa parada e a cansava com minhas solicitações, por isso instituíra que as crianças descansariam sempre uma hora após o almoço, garantindo a energia de todos.

Muito criativa, ela sempre inventava algo ou me passava alguma tarefa que a auxiliaria em seu trabalho de cuidar do lar. No entanto, dormir após o almoço era um comando que eu seguia se me contasse histórias, era quando eu a teria com exclusividade, sempre dividida entre muitos netos.

As suas histórias eram encantadoras e repletas de personagens. O casamento dos ratinhos é a que mais me lembro. Iniciava assim:

O ratinho Lalau se apaixonou por Jujuba, a mais inteligente e educada das ratinhas do bairro. Depois do namoro e do noivado, pediu-a em casamento. O Rato Pai e a Rata Mãe logo deram início às preparações. O enlace foi aprovado, pois Lalau era trabalhador e respeitava as pessoas.  E foi dado início ao enxoval que Jujuba levaria para viver com o Lalau, seu vestido e os muitos detalhes para a festa.

No dia do casamento, o ratinho escolheu casaca e pôs um cravo vermelho na lapela como aqueles do nosso jardim, muito perfumados (que eram cuidados por mamãe).

Estava todo frajola, ansioso pela sua mulherzinha. Jujuba estaria com um vestido branco com babadinhos, laços de fita rosados, sapatinhos delicados forrados de cetim e, nas mãos, um buquê de rosas biscuit

Ela se referia àquela bem miudinha do jardim, perto da janela do seu quarto, que eu gostava de olhar e colher. E continuou:

A grinalda e o buquê exalavam perfume. Todos se encantaram quando Jujuba passou pelo corredor da igreja em direção ao altar, onde o futuro “maridinho” a esperava… assoprando de ansiedade, como o teu pai – explicava ela.

Eu me encantava ao ouvi-la descrever o ratinho-padre de batina, o sacramento e sua importância, expressando a fervorosa católica que era e esclarecendo a importância do sacramento. Ela não perdia uma oportunidade. E seguia:

Os convidados vindos da capital, cada um com roupas criadas por estilista de renome, os padrinhos, Seu Ratão, que levaria Jujuba até o altar. O sobrinho dos noivos, Luizi, levaria as alianças num cestinho revestido de cetim com laços de fita mimosa e vestia casaca como o noivo, com gravata borboleta vermelha e sapatos pretos brilhando.

Devido à sua competência e criatividade com a costura e o estudo em revistas Burda adquiridas na famosa revisteira da Galeria Chaves de Porto Alegre, Alice descrevia tudo, cores, movimento dos personagens, o comportamento das familias que se uniam.

Alice estimulava a minha imaginação e eu voava. Ela contava até como todos se acomodaram na divisão de bancos da igreja, qual a música que tocou… e eu penetrava naquela ambiência da história através de sua voz suave e pontuada, amplificada no silêncio do quarto sombreado quando tudo me envolvia e encantava.

Após a cerimônia, houve festa com todos os animais da floresta. Todos eram muito curiosos e foram valorizados, pois vieram especialmente para prestigiar o casório.

Alice explicava o significado das palavras que eu não conhecia, abria um parêntese no meio da história, detalhando e ampliando o meu vocabulário.

Naquele dia, continuou, dando ênfase ao valor da alegria compartilhada entre tantos animais – ninguém brigou com ninguém, todos se divertiram, cantaram e dançaram até o amanhecer, quando os noivos saíram para trocarem de roupa. Depois, dirigiram-se para o cais e embarcaram em um navio a vapor para a lua-de-mel no Rio de Janeiro.

A aula sobre um dos transportes mais importantes no Brasil daqueles tempos ocorreria em outro dia, quando certamente contaria parte de sua própria lua-de-mel com papai. Eu já adormecera.

Sinto ternura ao me lembrar desses momentos de aconchego. Tenho certeza de que meu prazer pela contação de histórias e pelos livros de contos de fadas da Editora Melhoramentos teve início nessas tardes, quando ela, sempre dividida entre tantas coisas, era só minha em uma enorme cama acolhedora, onde me cedia o seu lugar, nunca o do papai. Era quando ninguém poderia “roubar” o meu colo. O colo da minha mãe.

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corações
Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
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4 respostas

  1. Muitas LEMBRANÇAS ressurgem com teu TEXTO. Tens INCRÍVEL capacidade de mobilizar sentimentos ternos no CORAÇÃO das pessoas.
    Obrigada por me lembrar da Alice, mesmo com tanta saudade!

  2. Alice foi uma grande mulher. Deixou a marca da sua existência no trabalho realizado na APAE de Passo Fundo, que criou e dirigiu por longos anos. Era minha amiga apesar da diferença de idade. Empreendemos muitas batalhas naquela instituição que se tornou um modelo no Estado. Meu microfone esteve sempre à sua disposição. Às vezes para cobrar duramente algumas autoridades. Cumpriu sua missão. Descanse em paz.

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